Em defesa da ciência e dos saberes comuns a todos

Em um bate-papo de divulgação do seu livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Ailton Krenak comentou, em uma piada, que, depois dos indígenas, os cientistas eram as pessoas que menos eram escutadas. A princípio, pode causar espanto a aproximação de saberes de origens tão distintas, mas não para Ailton: assim como os indígenas estão apontando há vários séculos a catástrofe que é não escutar a natureza, os climatologistas apontam as graves consequências que o aquecimento global terá para as vidas humanas, sendo ambos ignorados pela lógica da produção econômica.

A crise da pandemia parece ter surpreendentemente revertido tal lógica: a despeito da resistência de vários políticos (cuja rara exceção é o Brasil), as medidas de quarentena foram realizadas, com a finalidade de salvar o máximo possível de vidas humanas e a despeito das consequências imediatas para a produção econômica. Mesmo a ciência econômica apoiou a quarentena, a partir de sua própria discussão interna. Neste sentido, podemos dizer que a ciência voltou a ser valorizada no mundo e no Brasil?

Acredito que um pouco da resposta a essa pergunta está ocorrendo entre vários pensadores, em relação às consequências futuras da pandemia. De modo bem simplista, existem apontamentos otimistas que vão na direção de uma nova valorização positiva da ciência, coordenação mundial e solidariedade entre os indivíduos em situação de crise. Em oposição, outros autores apontam para um recrudescimento autoritário do Estado, a invasão de privacidade e a volta à normalidade anterior, em um ritmo inclusive mais intenso.

Tais contribuições, mais do que propriamente previsões, são importantes alertas, bem como horizontes de possibilidades para o mundo pós-pandemia. Nesse sentido, sigo um pouco a trilha de Eliane Brum, na qual esse novo mundo não está dado, mas em disputa, sendo que um dos campos de batalha central é a ciência contemporânea.

Se estamos falando de uma ciência revalorizada, significa que a ciência até então sofria de descrédito. Entender os motivos deste descrédito nos ajuda também a entender o que defender na ciência no mundo pós-pandemia.

Longe de querer esgotá-los, reflito o argumento de Isabelle Stengers para dois pontos centrais na crise de legitimidade da ciência: uma parte considerável da ciência se legitimou por meio da redução do pensamento válido ao método científico da experimentação. Neste sentido, os outros pensamentos, incapazes de passar por esse sistema, não seriam propriamente conhecimento, mas superstições. O segundo movimento encontra-se na aproximação da ciência com a indústria privada, no que a autora denomina de economia do conhecimento. Por essa aproximação, a produção tecnológica fica diretamente subordinada à produção de novas mercadorias.

A articulação desses dois movimentos provoca, aos poucos, a desconfiança da população em relação aos saberes científicos. Dado que os cientistas são parte interessada em lucros privados industriais, como confiar que os seus estudos apontam uma solução para toda a sociedade? A “carteirada” da metodologia científica, ao invés de restaurá-la, coloca-a como uma “elite intelectual” arrogante e voltada a si própria.

Tal estrutura é a que se reverteu nos rápidos acontecimentos da pandemia. A ciência colocou o seu saber na defesa de toda a sociedade, isto é, colocando o seu conhecimento como saber comum a todos e não voltado ao lucro, voltada a um esforço em que o conhecimento também é compartilhado em um esforço de solidariedade que envolve costureiras de máscaras, impressoras 3D, entregadores, esforço dos trabalhadores da área da saúde, entre tantos outros, o que não tira o fato de vários desses trabalhadores estarem sofrendo de sobretrabalho e exploração.

A volta à normalidade científica anterior no período pós-pandemia é o cenário que os pensadores pessimistas identificam: a legitimidade científica recuperada seria utilizada como barganha por posições privilegiadas nas suas relações com a indústria e com o Estado, com um Estado reforçado nas suas ações autoritárias. O perigo sempre foi o uso dessa legitimidade de uma determinada categoria ou classe social para separá-la da sociedade, sejam cientistas, guerreiros (militares), mercadores (comerciantes, empresários), sacerdotes (líderes religiosos) ou representantes políticos. Isto é, a legitimidade para manter privilégios em uma sociedade desigual.

O segundo elemento da volta da normalidade científica é que ela perderia a sua capacidade de atuar contra o aquecimento global. É preciso refletir neste momento para imaginar, criar e agir para um mundo em que não precisemos trabalhar longamente para a destruição do mundo. Se Átila Iamarino nos falou, na sua entrevista no Roda Viva, que a ciência desta vez foi escutada porque as consequências de não escutá-la ocorreram em questão de semanas, a legitimidade científica tem de ser utilizada para evitar as consequências do aquecimento global.

Em suma, é a isto que eu chamei de um saber comum. Um saber em que obviamente a dimensão da experiência e da técnica são  importantes, mas que as mesmas são partilhadas em uma comunidade de saberes, como é, por exemplo, a comunidade de programadores do software livre. Um saber que não precisa deslegitimar outros saberes, em uma ilusão cega do progresso, mas que está ao lado de outros saberes, que estão há séculos protegendo as florestas, como os indígenas ameríndios. Saberes indígenas que, como bem aponta Antônio Nobre, estão em conexão com a noção de sistema e complexidade que escapa à simples redução da ciência como a experimentação de Galileu.

Para adiar o fim do mundo, é preciso escutar e defender os saberes comuns, indígenas e científicos. É, portanto, recriar a dimensão da comunidade, na sua dimensão do cuidar. É preciso estar sempre atento às oportunidades do comum, bem como estar atento e recusar os apropriadores e oportunistas que buscam, seja por meio de sua legitimidade ou poder já constituído, avançar no autoritarismo, em suas carteiradas cegas pelo poder econômico e político (estatal).

Anunciando nossos cadernos de trabalho

Neste período de quarentena, nosso grupo de estudos encontrou-se num pequeno dilema. Planejávamos iniciar uma abertura e consolidação do grupo, dedicando-nos mais intensa e sistematicamente a algumas leituras que consideramos importantes e utilizando-as para criar espaços de produção de textos e de discussão franca dentro do Instituto de Economia da Unicamp, marco zero deste grupo.

O isolamento social, no entanto, adiou os planos de reuniões mensais até segunda ordem.
Assim, temos nos debruçado à leitura e digestão dos textos no tempo mais ruminante que a quarentena permite a alguns de nós. E em cima disto, começamos agora este projeto de cadernos de trabalho.

A leitura, especialmente dos textos que estamos lendo, especialmente em tempos quentes como estes, parece pedir a conversa, parece demandar que o pensamento se espraie em impressões que possam contaminar e articular-se com mais e mais pessoas, construindo teias de sentido mais amplas que possam nos orientar nesses tempos de mudança.

Como alguém disse por aí, a questão é esta: suspensa a normalidade e exposta a barbárie em que nos encontramos, a volta ao normal passa a ser quase uma impossibilidade. Se ocorrer seria, lembrando o Marx do 18 de brumário, para ocorrer-nos como farsa. Em verdade, passamos por um momento de mudança real, cujo sentido já estava em disputa e assim continuará. Para enfrentar o choque do retorno à rotina, a constituição de redes de solidariedade concretas e filosóficas se faz essencial. Pensemos juntos, portanto.

Desse ensejo, surgem estes cadernos. Pretendemos ensaiar os sentidos que os textos que estamos lendo nos apontam, as perguntas que suscitam, as respostas que sugerem para as inquietações que nos afligem. Ensaiando, estudando e sistematizando os sentidos do que lemos tanto para nós do grupo quanto numa aposta de abrir, articular-se, fazer pensar e ser questionado por quem nos ler nessa mesma quarentena, e mais além.

Desde março, lemos coletivamente três autores:

O primeiro foi o antropólogo sueco Alf Hornborg. Seu livro Global Magic dá conta de todas as preocupações e debates recentes em que está inserido, mas nossa discussão de grupo foi baseada em dois artigos que acreditamos dar uma boa visão sucinta de seus argumentos (que estão disponíveis nestes links: https://bit.ly/3cfFFAw e https://bit.ly/2KZCDoe).

A segunda foi a filósofa francesa Isabelle Stengers, com seu livro-manifesto No tempo das catástrofes.

E a terceira foi a jornalista Eliane Brum, com seu livro recente Brasil: construtor de ruínas.

Cada um deles será tema de um caderno, a ser publicado no decorrer dos próximos meses.

Da construção à corrosão das bases populares dos governos de Evo Morales: entrevista de Chryslen Gonçalves ao blog do Tapuia

O que esta acontecendo na Bolivia? Na conjuntura imediata de efervescência política na América Latina, o caso Boliviano aparece com uma especificidade marcante. Diferente do que aconteceu no Equador e no Chile, onde governos neoliberais sofreram derrotas para as forças populares, na Bolivia um governo progressista foi deposto após suspeitas de fraude no processo eleitoral. Forças de extrema direita demonstraram força nesse processo. Luis Fernando Camacho, um de seus líderes, apareceu rezando com uma biblia em cima da bandeira boliviana na residencia presidencial durante o processo de deposição. De lá, atacou de uma vez o plurinacionalismo, as sociedades e religiões tradicionais da Bolivia: “A Pachamama nunca voltará ao palácio. A Bolivia é de Jesus Cristo”.

No bojo desse processo multiplicaram-se análises do campo progressista que sublinham a conexão do golpe de Estado na Bolivia com interesses estrangeiros e da elite local, que desejariam promover uma agenda neoliberal na economia e reacionária no campo da cultura. Segundo Chryslen Gonçalves tais leituras apresentam uma grave ausência. Elas excluem o desgaste da relação do governo do MAS (Movimento al Socialismo) com as bases que garantiram sua ascensão do poder. Para Chryslen tal exclusão configura mais do que um extrapolamento da relevância de elementos externos na dinâmica social da Bolivia. Ela contribui para o silenciamento do povo boliviano enquanto agente político e da questão racial na Bolivia enquanto problema central para compreender a dinâmica social daquele país.

Chryslen Mayra Barbosa Gonçalves é antropóloga, mestre e doutoranda pelo programa de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, membro do grupo de trabalho “Derecho, Clases y Recofiguracion del Capital” da CLACSO e do Grupo de Enfoques Antropológicos. Atua principalmente nos seguintes temas: economias e epistemologias aymaras, mestiçagem na Bolívia, pós-colonialismo, decolonialidade, teoria crítica latino-americana, gênero e feminismo. É autora da dissertação “Epistemologias Manchadas: Mestiçagem e sujeitos políticos da descolonização na Bolívia andina”. Seu doutorado versa sobre a economia das mulheres Aymara em El Alto. Segue a sua entrevista ao blog do Tapuia.

Tapuia: Recentemente, você afirmou que a compreensão da queda de Evo Morales passa necessariamente pela compreensão da Guerra do Gás, evento de 2003. No que consistiu esse episódio? Qual foi a importância deles para a eleição de Evo no fim de 2005?

CG: A Guerra do Gás foi um movimento que aconteceu no ano de 2003 e teve como pauta principal o “gás para os bolivianos e não para a exportação” e a proposta de uma assembleia constituinte para reformular a estrutura do Estado boliviano, o que naquele momento batia de frente com as políticas neoliberais do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, também conhecido como Goni. O presidente convocou o exército desencadeando uma guerra civil e um alto número de mortos. O auge dos confrontos aconteceu no mês de outubro e é até hoje conhecido como “Octubre Negro”. A cidade de El Alto, a cidade com o maior número de pessoas indígenas da Bolívia e que foi constituída pela migração de comunidades rurais andinas, foi um dos centros deste conflito, e era, até a conjuntura atual, um dos espaços em que Evo tinha um grande número de apoiadores. Com a queda de Goni, as pautas por um presidente que sanasse as insatisfações dos movimentos sociais que se movimentaram entre 2000 e 2003 foram cruciais para a eleição de Evo Morales. O MAS (Movimento al Socialismo) construiu suas principais alianças com os movimentos sociais rurais, com as comunidades indígenas, com os movimentos de mineiros. Assim, os Ponchos Rojos, a CONAMAQ (Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qollasuyo), a CIDOB (Confederación de Pueblos Indígenas de Bolívia), a COB (Confederación Obrera de Bolívia), parte substancial dos movimentos indianistas e kataristas apostaram pela figura de Evo Morales durante o primeiro mandato.

O interessante é que este apoio se dá de uma forma bem direta, um exemplo são as respostas aos movimentos da Unión Juveniel Cruceñista (das terras baixas bolivianas, especialmente do Estado de Santa Cruz de la Sierra), que com as manifestações contra Sánchez de Lozada começam a agredir indígenas andinos que migraram para estes estados, com pressupostos racistas estes movimentos ameaçam impedir a entrada de um indígena ao poder, eles recebem uma resposta direta dos Ponchos Rojos e dos movimentos aymaras de Achacachi que apoiam Evo Morales e que repudiam os atos racistas dos movimentos cruceñistas.



Tapuia: O que Evo realizou em prol das demandas dos movimentos de 2003? A Constituição Política Plurinacional e Autônoma do Estado da Bolivia (2009) pode ser lida como uma conquista frente a essas demandas?

CG: Sim, eu acredito que a Constituição de 2009 foi um grande avanço para o Estado Boliviano, a proposta da Constituição, da Plurinacionalidade, da Pluralidade Jurídica (em especial pela figura da JIOC – Justiça Indígena Originária Campesina), já eram pauta dos movimentos indianistas e kataristas desde os anos 1970. Foram apropriadas por Evo Morales e implementadas com alguns problemas. Dentre os problemas eu acredito que o Mapa das 36 nações gerou um conflito racial e territorial que tem repercussões na conjuntura atual. Basicamente com a Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia em 2009, e acredito que pelas diversas alianças camponesas de Evo Morales, o governo do MAS tenta dar uma “cara indígena” para o que eles denominam “proceso de cambio”, para isso eles criam um mapa das nações indígenas que compõem o Estado Plurinacional, no entanto, na territorialização dos indígenas apenas as áreas rurais são marcadas como espaços indígenas, descaracterizando a identidade dos indígenas urbanos que lutaram nos conflitos de 2000 e 2003 em especial de El Alto e Cochabamba. Esse me parece um primeiro cisma entre o governo e os movimentos indígenas, sobretudo os indianistas e kataristas, e repercutiu nos Censo Demográfico de 2012.



Tapuia: Como Evo tentou mediar as tensões entre as sociedades tradicionais e setores empresariais-extrativistas a partir do Estado?

CG: Na Bolívia, como em qualquer país da América Latina, é impossível associar desenvolvimento econômico pautado em extrativismo com uma representação digna dos interesses dos povos indígenas. Alguns golpes à CONAMAQ (Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qollasuyo) e à CIDOB (Confederación de Pueblos Indígenas de Bolívia) no sentido de deslegitimar dirigentes eleitos pelas organizações, foram traços problemáticos de uma aliança impossível que o MAS tentou estabelecer entre interesses de empresários e indígenas.

Mas acredito que a romantização do governo de Evo Morales como “gobierno indígena” camuflou os conflitos internos que já existiam há alguns anos, evidenciei alguns deles em artigos que escrevi com o companheiro aymara Roger Adan Chambi e volto a mencioná-los aqui:

1) A proposta da construção de uma estrada que atravessa a Terra Indígena e Parque Nacional Isibóre Sécure (TIPNIS) sem a Consulta Prévia às populações indígenas deste território, o que desencadeou manifestações sobretudo no ano de 2011;

2) A deslegitimação dos movimentos e cabildos de Achacachi que aconteceram no ano de 2017 contra as corrupções do prefeito da comunidade associado ao MAS;

3) A repressão do movimento dos cocaleros dos Yungas e o assassinato de dirigentes indígenas que se manifestavam contra a a Ley de Coca, esta lei dava benefícios aos produtores de coca da região do Chapare (região onde encontram-se os sindicatos aos quais Evo Morales estava vinculado), mas que não atribuía os mesmos benefícios aos produtores de coca da região dos Yungas de La Paz.

Aqui eu dei três exemplos dos últimos anos que desembocaram em um clima de insatisfação no cenário atual e que não tiveram repercussão na mídia internacional, este é um dos motivos pelos quais as leituras de golpe de Estado como algo abrupto tem tido tantos adeptos.

Nos nossos últimos textos, Roger Chambi e eu, aliados às perspectivas de intelectuais e militantes bolivianos (sobretudo indígenas aymaras e quéchuas) convidamos a comunidade estrangeira a uma leitura mais cuidadosa do processo político boliviano, que toma em conta os cismas criados pelo próprio governo de Evo Morales com relação aos sujeitos que diz representar.

É importante situar que as possíveis fraudes na eleição de 20 de outubro não foi assumida pelo povo a partir influência de Camacho ou do informe preliminar da OEA, Evo Morales contava com 45% dos votos com mais de 80% das urnas apuradas no dia 20 de outubro, a apuração deixou de ser publicizada e, no dia 21 a resposta de uma vitória no primeiro turno foi anunciada. O processo da apuração fomentou mais insatisfações na população boliviana.


Tapuia: A partir de quando os sinais de perda de apoio do governo ficam mais visíveis?

CG: Eu cheguei na Bolívia em 2017, após o Referendum de 2016, minha perspectiva romantizada sobre o “Proceso de Cambio” do MAS, como a maior parte dos estrangeiros, me impedia de perceber aqueles cismas que eu já situei. Foi na minha relação com alguns espaços mais beligerantes, como os movimentos indianistas e kataristas e com as comunidades indígenas, que pude perceber as insatisfações com relação ao governo de Evo Morales. No plano discursivo os aymaras sempre situavam o Referendum de 2016 como um marco de desconfiança com o MAS e as leituras que insistimos em fazer hoje tomam a estrutura de organização política dos aymaras e quéchuas como motor desta insatisfação. No ano de 2016, Evo Morales chama um Referendum para decidir sobre a sua reeleição, inconstitucional neste momento, no entanto após a decisão popular de que Evo não poderia se reeleger o MAS desconsidera o Referendum e lança a candidatura de Evo Morales para as eleições gerais de 2019. Essa me parece uma quebra com as formas de organização políticas das comunidades Ayllus, que veem como necessária a rotatividade nos cargos de poder, os indígenas da Nação Qhara Qhara, situados entre os estados de Potosí e Chuquisaca, definiram em um Manifesto lançado no dia 7 de novembro que Evo Morales não respeitou o Muyo, alternância de poder necessária para um governo saudável, e se apegou ao poder.


Tapuia: Muitos têm caracterizado as tensões atuais da Bolivia como uma oposição entre cidade, contrária a Evo, e o campo, seu defensor. Essa narrativa se sustenta?

CG: Como eu já coloquei, com o estabelecimento do Mapa das 36 nações Evo Morales perdeu muito apoio dos espaços urbanos, e por sua aliança com a CONAMAQ e com a CIBOD o MAS teve um grande apoio dos espaços rurais. Mas eu acho simplista caracterizar como um conflito entre cidade-campo, oriente-ocidente-, índio-branco, e é justamente esta polarização fomentada pelo MAS e agora muito utilizada pela direita fascista de Camacho que nos impede de enxergar esses cismas, essas insatisfações já existentes e expressas há algumas semanas nas manifestações que tomaram as ruas da Bolívia.

Tapuia: Qual o lugar do povo boliviano e das sociedades tradicionais da Bolivia nesse processo? Como eles têm se posicionado?

CG: Eu tenho acompanhado os movimentos que acontecem na cidade de El Alto, as vigílias estão muito fortes nas zonas de Villa Adela e em demais zonas da cidade, especialmente porque alguns grupos (que ainda não se sabe se estão vinculados ao Camacho ou ao MAS) estão destruindo espaços públicos e incendiando residências. Um exemplo foi o incêndio provocado na residência do reitor da Universidad Mayor de San Andrés, Waldo Albarracin, que se colocou diretamente contra o MAS em todo este processo. Todos estes “atos violentos” tem sido associados aos opositores de Evo Morales, no entanto é questionável que a própria oposição tenha incendiado a casa de um aliado. Tudo isto me parece uma disputa pela legítima narrativa histórica que tem feito silenciar os movimentos sociais que não estão associados à polarização, é uma disputa de elites sustentada pela mídia internacional e uma perspectiva histórica de Golpe repentino que romantiza o Governo de Evo Morales ou que o demonifica em nome de uma “democracia” imperialista protagonizada por Luis Fernando Camacho. O povo continua silenciado nas notícias!


Tapuia: Quais são os grupos que compõe a base mais estrita de Evo? Quais os grupos a esquerda que se posicionaram contra e quem é a oposição a Evo? Quais os papéis dos grupos de extrema direita e quem é Luis Fernando Camacho?

CG: O Colectivo Curva veiculou uma imagem interessante nos últimos dias que apresenta duas fotos de Evo Morales, a primeira em momentos de bonança do governo, Evo Morales está rodeado por pessoas brancas de classes altas e empresários bolivianos. Na segunda foto, que representa os últimos dias antes da renúncia de Evo Morales e Álvaro Garcia Linera, Evo aparece rodeado de autoridades indígenas preocupadas pela instabilidade política, esta montagem ilustra os limites das alianças que Evo Morales tentou estabelecer com a elite empresarial branca.

Luis Fernando Camacho é um empresário dirigente do Comité Pro-Santa Cruz e compôs a Unión Juvenil Cruceñista, a mesma organização racista violenta dos processos de 2003 nas terras baixas bolivianas. Camacho é uma figura que alia uma masculinidade violenta, conhecido como “Macho Camacho” ou o que “tiene pelotas” para combater o “comunismo”, com um cristianismo ortodoxo. As imagens de Luis Fernando Camacho entrando no Palacio Quemado com a Bíblia nas mãos e ajoelhado sobre a bandeira tricolor boliviana tem sido muito difundida internacionalmente. A entrada no Palacio tinha como objetivo a entrega de uma carta a Evo Morales, mas ele já tinha anunciado a renúncia e a instituição estava vazia. Camacho é claramente um personagem aliado ao neoliberalismo, aos interesses dos grandes empresários e ao retorno da República como estrutura de Estado. É uma figura relativamente recente no cenário nacional e que não participou como candidato das últimas eleições.

A possível aliança entre Camacho e Carlos Mesa, candidato segundo colocado nas eleições do dia 20 de outubro, tem sido anunciado por analistas políticos. No entanto, me assusta a possibilidade de outra aliança política, a de Marco Pumari, quem estava de joelhos ao lado de Camacho no Palácio Quemado. Marco Pumari do Estado de Potosí é filho de mineiro, proveniente da comunidade indígena de Pati Pati e dirigente da COMCIPO (Comitê Cívico de Potosí), por conta dos conflitos pela extração do lítio o MAS perdeu muitos aliados em Potosí, a aliança Camacho-Pumari pode servir pra tentar construir uma aliança empresários-indígenas e, mais uma vez na história da Bolívia (assim como o pacto militar-campesino de René Barrientos) as forças da direita fascista vão tentar se beneficiar dos movimentos indígenas.

O perigo de Camacho é iminente, este me parece o único acerto da velha esquerda de vanguarda latino-americana.

Tapuia: Ainda está na mesa a possibilidade desse processo político se encaminhar para um fortalecimento do poder popular na Bolivia?

CG: O erro da esquerda de vanguarda latino-americana é, mais uma vez na história da Bolívia, como o MNR em 1952 durante a Revolução Nacional, descaracterizar o conflito enquanto racial, além silenciar as insatisfações da população boliviana com relação ao governo de Evo Morales.

Não desconsidero aqui os bolivianos que realmente votaram por Evo Morales que, antes dos obscuros resultados do dia 21 de outubro, contavam com 45% dos votos. O que quero ressaltar é que as insatisfações ao governo de Evo Morales não estão sendo influenciadas pelo imperialismo norte-americano, o povo sofreu os golpes contínuos no “Proceso de cambio” que eles acreditaram quando Evo Morales assumiu a presidência. É injusto desconsiderar estas vozes que estão nas ruas situando os erros do MAS, e que repudiam tanto Camacho quanto Mesa como possíveis representantes.

Nós, como intelectuais estrangeiros de um país que cumpriu um papel subimperialista na Bolívia, temos o dever de dar ênfase à voz do povo boliviano que está nas vigílias hoje, que colocam o corpo na luta, nas ruas. Só assim podemos compreender que apenas o poder popular pode restituir a democracia boliviana, que a polarização entre MAS vs Imperialismo é uma polarização de caudillos que não representa os interesses das mulheres cholas, dos universitários, dos mineiros, dos pequenos produtores, dos quéchuas e aymaras que compõem os andes bolivianos, mas também dos ayoreos, chiquitanos, guaranis e os mais de 36 povos indígenas e não indígenas que constituem a Plurinacionalidade Boliviana.

Tenho companheiros vinculados às Juntas Vecinales da cidade de El Alto que se mobilizaram em defesa da Whipala (bandeira indígena do Qollasuyo) que foi arrancada por militares de seus uniformes e queimadas em praça pública após a renúncia de Evo Morales. O companheiro Roger Chambi defende que alguns símbolos indígenas foram apropriados pelo MAS, esvaziando seus sentidos políticos e históricos vinculados à nação quéchua e aymara, por este motivo a Whipala foi hostilizada em muitos espaços como símbolo do MAS, mas também a defesa da Whipala, que tomou as ruas de El Alto nos últimos dias, foi caracterizada pela mídia internacional como uma defesa do MAS. Os coletivos aymaras e quéchuas, bem como as palavras de ordem nas manifestações de ontem (11 de novembro) tomaram a Whipala e restituíram seu significado histórico de luta anti-colonial, das memórias de sublevações como de 1781 de Tupak Katari e Bartolina Sisa, este me parece um grande exemplo do poder popular na Bolívia, a ressignificação prática de símbolos históricos no processo de luta. Espero que a Whipala possa ser o que nos direcione a ouvir as pautas do povo.


Tapuia: Você teria dicas de meios de comunicação popular a partir dos quais podemos acompanhar a crise?

CG: Eu sempre prefiro indicar os meios de comunicação independentes dos movimentos indianistas e kataristas, porque eles estão fazendo este debate há muito tempo e porque contam com um núcleo intelectual muito competente, em especial o Colectivo Curva e o Jichha. Nos últimos dias o coletivo feminista Mujeres Creando também tem assumido um papel interessante na difusão de informações.