Em defesa da ciência e dos saberes comuns a todos

Em um bate-papo de divulgação do seu livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Ailton Krenak comentou, em uma piada, que, depois dos indígenas, os cientistas eram as pessoas que menos eram escutadas. A princípio, pode causar espanto a aproximação de saberes de origens tão distintas, mas não para Ailton: assim como os indígenas estão apontando há vários séculos a catástrofe que é não escutar a natureza, os climatologistas apontam as graves consequências que o aquecimento global terá para as vidas humanas, sendo ambos ignorados pela lógica da produção econômica.

A crise da pandemia parece ter surpreendentemente revertido tal lógica: a despeito da resistência de vários políticos (cuja rara exceção é o Brasil), as medidas de quarentena foram realizadas, com a finalidade de salvar o máximo possível de vidas humanas e a despeito das consequências imediatas para a produção econômica. Mesmo a ciência econômica apoiou a quarentena, a partir de sua própria discussão interna. Neste sentido, podemos dizer que a ciência voltou a ser valorizada no mundo e no Brasil?

Acredito que um pouco da resposta a essa pergunta está ocorrendo entre vários pensadores, em relação às consequências futuras da pandemia. De modo bem simplista, existem apontamentos otimistas que vão na direção de uma nova valorização positiva da ciência, coordenação mundial e solidariedade entre os indivíduos em situação de crise. Em oposição, outros autores apontam para um recrudescimento autoritário do Estado, a invasão de privacidade e a volta à normalidade anterior, em um ritmo inclusive mais intenso.

Tais contribuições, mais do que propriamente previsões, são importantes alertas, bem como horizontes de possibilidades para o mundo pós-pandemia. Nesse sentido, sigo um pouco a trilha de Eliane Brum, na qual esse novo mundo não está dado, mas em disputa, sendo que um dos campos de batalha central é a ciência contemporânea.

Se estamos falando de uma ciência revalorizada, significa que a ciência até então sofria de descrédito. Entender os motivos deste descrédito nos ajuda também a entender o que defender na ciência no mundo pós-pandemia.

Longe de querer esgotá-los, reflito o argumento de Isabelle Stengers para dois pontos centrais na crise de legitimidade da ciência: uma parte considerável da ciência se legitimou por meio da redução do pensamento válido ao método científico da experimentação. Neste sentido, os outros pensamentos, incapazes de passar por esse sistema, não seriam propriamente conhecimento, mas superstições. O segundo movimento encontra-se na aproximação da ciência com a indústria privada, no que a autora denomina de economia do conhecimento. Por essa aproximação, a produção tecnológica fica diretamente subordinada à produção de novas mercadorias.

A articulação desses dois movimentos provoca, aos poucos, a desconfiança da população em relação aos saberes científicos. Dado que os cientistas são parte interessada em lucros privados industriais, como confiar que os seus estudos apontam uma solução para toda a sociedade? A “carteirada” da metodologia científica, ao invés de restaurá-la, coloca-a como uma “elite intelectual” arrogante e voltada a si própria.

Tal estrutura é a que se reverteu nos rápidos acontecimentos da pandemia. A ciência colocou o seu saber na defesa de toda a sociedade, isto é, colocando o seu conhecimento como saber comum a todos e não voltado ao lucro, voltada a um esforço em que o conhecimento também é compartilhado em um esforço de solidariedade que envolve costureiras de máscaras, impressoras 3D, entregadores, esforço dos trabalhadores da área da saúde, entre tantos outros, o que não tira o fato de vários desses trabalhadores estarem sofrendo de sobretrabalho e exploração.

A volta à normalidade científica anterior no período pós-pandemia é o cenário que os pensadores pessimistas identificam: a legitimidade científica recuperada seria utilizada como barganha por posições privilegiadas nas suas relações com a indústria e com o Estado, com um Estado reforçado nas suas ações autoritárias. O perigo sempre foi o uso dessa legitimidade de uma determinada categoria ou classe social para separá-la da sociedade, sejam cientistas, guerreiros (militares), mercadores (comerciantes, empresários), sacerdotes (líderes religiosos) ou representantes políticos. Isto é, a legitimidade para manter privilégios em uma sociedade desigual.

O segundo elemento da volta da normalidade científica é que ela perderia a sua capacidade de atuar contra o aquecimento global. É preciso refletir neste momento para imaginar, criar e agir para um mundo em que não precisemos trabalhar longamente para a destruição do mundo. Se Átila Iamarino nos falou, na sua entrevista no Roda Viva, que a ciência desta vez foi escutada porque as consequências de não escutá-la ocorreram em questão de semanas, a legitimidade científica tem de ser utilizada para evitar as consequências do aquecimento global.

Em suma, é a isto que eu chamei de um saber comum. Um saber em que obviamente a dimensão da experiência e da técnica são  importantes, mas que as mesmas são partilhadas em uma comunidade de saberes, como é, por exemplo, a comunidade de programadores do software livre. Um saber que não precisa deslegitimar outros saberes, em uma ilusão cega do progresso, mas que está ao lado de outros saberes, que estão há séculos protegendo as florestas, como os indígenas ameríndios. Saberes indígenas que, como bem aponta Antônio Nobre, estão em conexão com a noção de sistema e complexidade que escapa à simples redução da ciência como a experimentação de Galileu.

Para adiar o fim do mundo, é preciso escutar e defender os saberes comuns, indígenas e científicos. É, portanto, recriar a dimensão da comunidade, na sua dimensão do cuidar. É preciso estar sempre atento às oportunidades do comum, bem como estar atento e recusar os apropriadores e oportunistas que buscam, seja por meio de sua legitimidade ou poder já constituído, avançar no autoritarismo, em suas carteiradas cegas pelo poder econômico e político (estatal).